19 julho 2006

O Vendedor de Gelados



Pé ante pé, seguia as pegadas decalcadas na areia fina mas já pouco esbranquiçada, onde flutuavam os restos mortais de inúmeros polímeros plásticos, fruto da pouca ou inexistente consciência ecológica daqueles que, nessa época do ano, passam os dias na praia e as noites em bares, falando e culpabilizando os governos pela triste condição imunda que reina no país que eles próprios conspurcam.
Eram pegadas consistentes, revelando um passo firme, dedicado, conhecedor do terreno que pisava. Eram pegadas monótonas, tristes, denunciando um passo cansado, que não percorria aquele terreno em passeio. Eram as pegadas do Vendedor de Gelados!
Parei, estendi a toalha na areia, sentei-me nela e abracei a paisagem com um olhar profundo. Era deslumbrante…
A força do mar é surpreendente. Tem um poder tranquilizante, entoando suaves melodias em cada rebentar duma onda. E em todas essas pequenas explosões, eram projectados estilhaços de mar que me atingiam o corpo e temperavam a minha tristeza e agonia com o mais puro de todos os sais.
- Olhó gelado! Olha a água fresquinha e a bolacha americana! - ouvi eu gritar, não muito longe donde me encontrava.
Era ele! Era o responsável pelas pegadas que eu atentamente segui e me levaram até àquele lugar fantástico. Era o Vendedor de Gelados!
Tinha um porte considerável, do qual se destacava um portentoso abdómen com um tamanho tal, que suplantava o volume da arca que transportava às costas.
- Olhó gelado! – retorquia ele, de novo, já enjoado dos automatizados sabores exóticos que lhe esvoaçavam da boca e derretiam na tórrida atmosfera que circulava em torno da sua mala pouco térmica mal fechada.
E lá continuava, com o seu passo pendular, por vezes interrompido por assobios e acenos de pessoas, principalmente crianças, enfeitiçadas pela magia da arca que ele carregava, rendidas à tentação da pecaminosa e doce gula que delas se apoderava.
Sem pestanejar, o Vendedor de Gelados rapidamente alterava o seu percurso, assumindo um rumo perpendicular ao seu trajecto normal, tal como um caranguejo que, de repente, começou a andar para diante.
Pousava a mala na areia e, antes de pronunciar qualquer intenção em abri-la, suspirava profundamente como que agradecendo aquele período de diástole merecido. Então, satisfazia os gulosos desejos de quem o solicitava e voltava ao encontro da linha marcada pelas suas pegadas, como um comboio que se arrasta sobre os carris de ferro em brasa.
Coloquei os auscultadores dum leitor de CD’s portátil, que escondia na mochila, e continuei a apreciar a paisagem, ao som complexo e sincopado duma composição de jazz que, inexplicavelmente, acompanhava o ritmo das irrequietas ondas balançantes do oceano. Era como assistir a uma dança contemporânea, em que as bailarinas agitavam longos e transparentes véus de água, com movimentos irregulares que variavam entre instantes duma acalmia absoluta e acessos de raiva incontrolada.
Nesse momento, tudo me pareceu perfeito!
A vida podia, realmente, ser um conto de fadas. Tinha descoberto, naquele curto período de tempo, que, tal como no grande ecrã, o meu percurso terreno se tornava mais belo e sereno com música de fundo. E é essa, sem dúvida, a grande diferença entre a vida real e um filme.
Para qualquer direcção em que olhasse, tudo parecia ter mais cor, mais alegria, mais vida. Até o próprio Vendedor de Gelados aparentava uma leveza e motivação tal, que faziam dele uma criança de província delirante e maravilhada ao ver o mar pela primeira vez.
Mas como qualquer tipo e formato de arte, a música tem o poder de despertar em nós sentimentos diversos, por vezes contraditórios, dependendo do seu próprio ênfase e tonalidade, e das recordações que consegue reavivar-nos na memória.
Como tal, seguindo-se uma melodia triste e melancólica, o meu estado de espírito, assim como o magnífico dia luminoso que, até àquele preciso momento, se fazia sentir, tornou-se monótono e cinzento.
Retirei, de pronto, os auscultadores, e voltei à realidade, nem tão colorida como uma música animada, nem tão deprimente como uma melodia perturbadora.
- Olhó gelado! Olha a água fresquinha e a bolacha americana! – voltei a ouvir, juntamente com um já pouco estrondoso bater das ondas nas rochas, aquela voz agora rouca e cansada, assinalando, por certo, que a sua presença na praia estava a chegar ao fim.
A mala onde transportava aquelas calóricas e deliciosas guloseimas que, naquele quente e abrasivo instante, de gelado só já tinham o nome, estava, tal como o areal e ao contrário da maré, quase vazia.
Era o sinal que a sua jornada de labor estava praticamente concluída, que os seus secos e calejados pés iriam descansar, mesmo que só por umas horas, no seu pobre mas reconfortante lar.
E já sem ninguém na praia, num gesto mecanizado e inconsciente próprio dum operário numa linha de montagem em série, ouvi-o apregoar pela última vez:
- Olhó gelado!

17 julho 2006

O bar da D. Luz



Perco-me no tempo, mergulho na imensidão dum pequeno livro. Afogo-me no reflexo dourado dum copo alto, cada vez mais baixo, até que desaparece e é rendido por outro.
As pessoas arrastam-se, sozinhas, na multidão.
Minto aos outros e a mim mesmo, até que acredito que vivo nessa mentira.
- “Boa tarde D. Luz” – diz um velho e enegrecido homem, que apenas se mantém erecto devido à firmeza de duas canadianas.
- “Pensei que já estavas morto” – diz a Dona que absorve mais Luz do que irradia, talvez pelas manchas escuras e opacas que ostenta na arrepiante cabeleira desleixada que transporta.
Outra multidão que arrasta pessoas solitárias, de uma margem para a outra.
- “Esta semana já morri seis vezes” – diz o amadurecido canceroso portador das muletas. (Mas será que algum dia esteve vivo?)
E ela enche mais uma garrafa duma água fétida, para acompanhar a difícil digestão doutra água ainda mais turva, servida numa pequena chávena branca, suportada por um pires. Triste sina, a do pires…
Outro apito, outro mar de gente que começa e acaba de atravessar o rio.
E ela suja as mãos na conspurcada água que jorra da torneira. E depois vai deixando as pequenas partículas purulentas nos pratos, chávenas e copos, cada vez que lhes toca, até ter que molhar as mãos de novo.
A empregada, desnorteada, muito a sudoeste do seu país de origem, fragmenta em pedaços a vida de um copo, que provavelmente nasceu na Marinha Grande. Uma coisa é certa, morreu no Cais do Sodré, tal como o preto que, esta semana, já ressuscitou seis vezes.
Outro casal de turistas, ofuscados pela energia luminosa que a D. Luz absorve. – “Que bom seria viver aqui” – pensam eles com uma estúpida inocência.
E mais um viciado que troca pensos rápidos por chapas metálicas.
- “Aqui estão mais duas torres loiras dispostas a dispensar umas moedas que ajudam a imortalizar o vício” – é a informação que atravessa as poucas sinapses activas daquilo a que já se chamou um cérebro, na cabeça do drogado.
E a D. Luz canta: - “Eu vi um sapo, a encher o papo…”
Entra uma radiosa e alta mulher, ajudada pelos saltos dos seus bicudos sapatos, triunfante pela luz que irradia, e que a Dona absorve, daquelas que só mostra a secreta vagina a homens dourados pelo reflexo dos botões de punho dos fraques que usam.
E eu fecho o livro, e deixo-me arrastar pela multidão, antes que tenha a mesma sorte que o copo.