17 julho 2006

O bar da D. Luz



Perco-me no tempo, mergulho na imensidão dum pequeno livro. Afogo-me no reflexo dourado dum copo alto, cada vez mais baixo, até que desaparece e é rendido por outro.
As pessoas arrastam-se, sozinhas, na multidão.
Minto aos outros e a mim mesmo, até que acredito que vivo nessa mentira.
- “Boa tarde D. Luz” – diz um velho e enegrecido homem, que apenas se mantém erecto devido à firmeza de duas canadianas.
- “Pensei que já estavas morto” – diz a Dona que absorve mais Luz do que irradia, talvez pelas manchas escuras e opacas que ostenta na arrepiante cabeleira desleixada que transporta.
Outra multidão que arrasta pessoas solitárias, de uma margem para a outra.
- “Esta semana já morri seis vezes” – diz o amadurecido canceroso portador das muletas. (Mas será que algum dia esteve vivo?)
E ela enche mais uma garrafa duma água fétida, para acompanhar a difícil digestão doutra água ainda mais turva, servida numa pequena chávena branca, suportada por um pires. Triste sina, a do pires…
Outro apito, outro mar de gente que começa e acaba de atravessar o rio.
E ela suja as mãos na conspurcada água que jorra da torneira. E depois vai deixando as pequenas partículas purulentas nos pratos, chávenas e copos, cada vez que lhes toca, até ter que molhar as mãos de novo.
A empregada, desnorteada, muito a sudoeste do seu país de origem, fragmenta em pedaços a vida de um copo, que provavelmente nasceu na Marinha Grande. Uma coisa é certa, morreu no Cais do Sodré, tal como o preto que, esta semana, já ressuscitou seis vezes.
Outro casal de turistas, ofuscados pela energia luminosa que a D. Luz absorve. – “Que bom seria viver aqui” – pensam eles com uma estúpida inocência.
E mais um viciado que troca pensos rápidos por chapas metálicas.
- “Aqui estão mais duas torres loiras dispostas a dispensar umas moedas que ajudam a imortalizar o vício” – é a informação que atravessa as poucas sinapses activas daquilo a que já se chamou um cérebro, na cabeça do drogado.
E a D. Luz canta: - “Eu vi um sapo, a encher o papo…”
Entra uma radiosa e alta mulher, ajudada pelos saltos dos seus bicudos sapatos, triunfante pela luz que irradia, e que a Dona absorve, daquelas que só mostra a secreta vagina a homens dourados pelo reflexo dos botões de punho dos fraques que usam.
E eu fecho o livro, e deixo-me arrastar pela multidão, antes que tenha a mesma sorte que o copo.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

ISTO N É PARA KK UM

23:21  
Anonymous Anónimo said...

As tuas palavras complexas explicam o simples, o cru, a verdade da realidade, a verdade de quem observa... e eu, dou por mim a reler a vida outra vez!
Bjinhux, Paulinha.

08:03  
Blogger zekarlos said...

Não é apenas um BOM COSTUME mas sim O MELHOR deles, o (f)acto de me embebedar pela tarde sentado em esplanadas à beira rio (neste caso o Tejo), em épocas da vida em que A MORAL está abaixo da linha de água.
Talvez esta pequena explicação possa tornar menos confusa a interpretação deste texto...

13:11  

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