28 junho 2006

Elogio à Loucura



Repudio a lucidez,
Inimiga da verdade,
Da minha verdade,
Daquela em que eu acredito.

Desprezo a lucidez,
Aliada da tristeza,
Aquela que impede os sonhos
A que eu próprio me permito.

Abomino a lucidez,
Impávida destruidora
De deliciosos fetiches nocturnos.

Critico a lucidez,
Por nos deixar cegos, surdos e mudos.

Detesto a lucidez,
Pela lúcida vertente ditadora que ostenta.

Combato a lucidez,
Com copos dourados e fumos magenta.

Receio a lucidez,
Pela cruel monotonia que impõe na minha vida.

Comparo a lucidez
Ao agonizante e previsível trajecto
De um condenado infectado com sida.

Declaro que a lucidez
É o maior flagelo da humanidade!

Atribuo a lucidez ao diabo,
Como sendo a sua mais nefasta crueldade.

Feliz de quem abraça o impossível
Com um certo grau de ternura.

Loucos são aqueles
Que elegem a lucidez
Em detrimento da loucura!

Parasita



O medo teme que morras – cobarde – sem ti não existiria,
E no entanto é ele que te mata, todas as noites, dia após dia.

O medo penetra-te, o medo possui-te, suga-te com gosto,
E faz de ti prostituta, vendendo à insónia um lugar no teu leito.
Foge depois pelos olhos, deixando-te marcas salgadas no rosto,
Até que te mata, cravando bem fundo punhais no teu peito.

O medo degola-te, dilacera-te a alma, como um bisturi,
E no entanto – contrasenso – o que seria do medo sem ti?

A mais dramática das cartas de amor



Penso em ti, debaixo deste manto de lua e estrelas sem cor.
E quando o murmúrio dum frio alcoolizado as faz parecer infinitas,
Acredito fielmente que, tu e eu, somos a Geração do Amor...

E tu entras em mim, sob a forma ácida duma solução salina intravenosa,
Tal como o álcool se apodera dum fígado e o transforma em cancro,
Embriagando os meus sentidos com uma subtil calma nervosa.

E eu entro em ti, ao som ritmado das sete badaladas do sino da igreja,
Na assimetria típica duma desconfiada posição adolescente,
Enquanto transpiras pecado, rezando para que ninguém nos veja.

Penso em nós, debaixo dum manto incolor de lua e estrelas tecido.
E quando o calor das tuas mãos de parteira me ressuscita, sinto que te conheço,
Mesmo quando esse sentimento absurdo se torna desconhecido...

Perfil



Mais do que um simples bar, escondido entre os andaimes,
Trepadeiras oxidadas que ocultam a fachada,
O meu perfil segue os passos de um destino marcado,
Entre tragos de cerveja, numa noite alucinada,
Envolvendo com os olhos o teu seio perfilado.

Mais do que uma simples viagem, a uma província do sul,
Uma Jamaica perdida, numa zona marginal,
O teu perfil torna doce o gosto a vinagre azedo,
Temperando todo o teu rosto com um lacrimoso sal,
Numa tentativa incessante de disfarçar o teu medo.

Mais do que o uma simples loucura, numa rua sem emenda,
Rés-do-chão dum bairro alto, mais alto que os próprios tectos,
O nosso perfil deambula por caminhos deslumbrantes,
Entre o cheiro a carne viva, resultante dos afectos,
E o arrependido desespero do suor dos traficantes.

Mais do que uma simples paixão, contornada de incertezas,
Um caminho rumo ao Norte, traçado na palma da mão,
O perfil da amizade, aleatório, eterno e subtil,
É algo de muito vasto, um cocktail de emoção,
E impede que jamais me esqueça, de ti, desse teu perfil…

Mau Presságio



A cruel felicidade do amor é algo pequeno,
Que não compensa a tristeza inerente que se segue,
A infeliz realidade concebida a jusante,
O terrível desgosto de quem abre os olhos
E percebe que tudo não passou de farsa e mentira.

A pseudo-felicidade do amor é algo minúsculo,
Quando comparada com a real dor,
Aquela que atravessa a espinal-medula e se instala no peito,
Como um condenado a prisão perpétua
Que faz do nosso tórax a sua cela.

A triste felicidade do amor
É o uivar dos cães antes do terramoto,
A chegada dos Cavaleiros do Apocalipse,
O ultimatum do nosso inimigo antes de nos atacar,
Antes de nos destruir com todas as suas armas e forças.

A única felicidade do amor
É encontrada já muito depois de termos amado,
Muito depois de termos sofrido.
É quando, enfim, percebemos que o amor não mata,
É quando, por fim, tiramos proveito de o ter vivido…

Desilusão



Amor e ódio, desejo e repúdio, contradição,
Calma intranquila, lenta taquicardia, ordenada confusão,
Dor saborosa, magro inchaço no peito, cordilheira de depressões,
O que me fizeste? No que te tornaste? Restam-me recordações…

Antes de te conhecer, nada recordo,
Uma vida cheia de um vazio imenso.
Depois de te encontrar, delirei embriagado,
Levitei ao som da combustão dum pau de incenso,
Aprendi que as lágrimas são versos dum fado.

Perdi-me na tua sabedoria, enganei-me com as minhas certezas!
E só Deus sabe quantas eu tinha! Eram tantas…
Mostraste-me o que eras, mostraste-me o que querias ser.
Eu queria o que tu eras e gostava daquilo que querias,
E só agora que partiste reparo que, afinal, nunca te cheguei a conhecer!

Ainda bem que o amor é cego,
Para que nos possamos amparar na sua bengala,
Quando decide partir.
Ainda bem que o tempo tudo cura,
Para que possamos olhar em frente
E continuar a sorrir…

Rasto da Imaginação



Resolvi abrir o espírito
E seguir os passos da Imaginação.
Auscultei cuidadosamente o seu rasto,
Desliguei-me da voz da razão.
E nesse rasto quente e sinuoso
Que o suor dos pés humedeceu,
Encontrei um poema maravilhoso
Que transcrevi e ficou só meu…

Dependendo da intempérie,
Que alterava a firmeza do solo,
Os passos organizavam receitas
Esculpidas com ingredientes dum bolo.
E nesse bolo morno e salgado
Que o engenho das mãos teceu,
Encontrei um poema inspirado
Que transcrevi e ficou só meu…

Descobri bons e diversos sabores
Em cada fatia que saboreava,
Gosto a chuva e neve agridoce,
Fruto do solo por onde o rasto andava.
E nesse rasto frio e cansado
Que a inquietude e força dos pés fez,
Encontrei um poema abandonado
Que transcrevi e deixei para vocês…

Distorção



“- Come e trabalha,
Cala e consente.”
Agonia-me este mundo,
Vejo um universo diferente.

Olho para a lua e parece-me um cubo,
Por vezes uma pirâmide quadrangular.
Apenas depende da nossa relação com um vértice.
É como um dado visto de cima a girar.

Olho para o céu e vejo água.
(Não pensem que está a chover,
Não é essa a estação do ano)
Para mim o céu é um espelho quebrado
Por alguém que tentou nadar
No reflexo do oceano.

Olho para o mar e vejo um jardim,
Impregnado com flores e cheiro a jasmim.
E eu entro nele com o meu olhar,
Deixando a brisa agitar as pétalas
Até que aquele movimento
Me consiga hipnotizar.

Dependendo das horas, vejo quadros diferentes,
Uma pirâmide num deserto de água
Ou um jardim alagado pelas lágrimas da nossa mágoa.

E nesses momentos tenho a certeza
Que os jardins não estão na terra
E os desertos não são de areia.
Ah, se soubessem o que eu vejo!
Vocês não fazem ideia…

Lágrimas



Fascinantes, essas pequenas gotículas que emergem do globo ocular.
Têm vontade própria, não as podemos controlar.
E o seu percurso sinuoso, que deixa uma suave marca no rosto, acaba sempre por cruzar os lábios, deixando aquele gosto salgado, límpido, produto da nossa dor mais profunda.
Alguém sabe onde acaba uma lágrima?
De onde vem, todos sabemos. Vem de dentro, é o sangue da alma.
Mas quem chora não repara que as lágrimas são suas aliadas, escorrendo e levando para longe as mágoas, para que se volte a acreditar que a vida é, sem dúvida, um conto de fadas…

27 junho 2006

Sentidos Cruzados



Consigo ver os sons,
Arrancados da viola,
Flutuando sem destino,
Preenchendo o volume da sala,
Gritando versos dum hino,
Que me tranquiliza e embala.

Consigo cheirar a água,
Que escorre pela parede,
E o odor das suas gotas,
Faz-me desejar ter sede,
Sede de amar e viver,
Sede de nunca ceder.

Consigo ouvir o aroma,
Que envolve este cinzeiro,
Tem uma tonalidade tão forte, tão alta,
Mais aguda que o próprio cheiro.
E o fumo declama poemas de paixão e dor,
Letras melancólicas
Escritas pelo sopro dum fumador.

Consigo saborear o cartaz,
Colocado na vitrine,
Tem vários ingredientes,
Mas só um sabor o define.
Um sabor a ferida aberta,
Envolta numa tira de gaze.
Um sabor melancólico e triste,
Fruto dum improviso de jazz.

Consigo sentir as cores,
Que me beliscam os dedos,
Teclas brancas e pretas,
Pressionadas com desejo e sem medos.
Pianos arrebatadores,
Delicados e transparentes.
No fundo são de todas as cores,
Que me tocam e deliciam,
Tal como tu, meu amor,
Me surpreendes…