01 dezembro 2007

...aBLOGcalipse... "for" now!!!

(Blog fechado pela ASAE)

01 novembro 2007

As lavandarias



Salas quadradas de cilíndricos cubos rotativos. Milhares de cavalos-vapor que fazem ressonar os desconjuntados tambores oscilantes das lavadoras-máquinas. Milhões de vapores assépticos vendidos em frascos de plástico com aroma de alfazema.
As roupas entram alinhadas atrás das pessoas. As roupas escondem sentadas a sujidade das pessoas que as vêm lavar. As cadeiras. Páginas de livros que se colam aos dedos em suadas eternidades de espera.
Os cavalos giram enfurecidos enquanto os tambores relincham. Fazem-se apostas…
As máquinas sorriem lucros! Os bolsos encardidos libertam moedas branqueadoras que penetram na imaculada ranhura das lavadoras. Plimm… Uma corrida de amaciadores sonhos brancos, bem cheirosos, delicados.
O programa 2 transporta lãs e sedas para a meta. Os cavalos matam a sede com galões de água-detergente. As peúgas tropeçam na ferrugem das máquinas. Os tambores cilindram as desmaiadas roupas ensopadas no suor do vapor dos acelerados cavalos centrifugantes. A lavadora 6 chega ao fim… Depois a 3, a 8, a 12…
Os dedos descolam-se dos livros e mimam os exaustos cavalos com mais algodão-doce.
As cadeiras vazias parem pessoas. As pessoas transpiram bafo de cavalo dentro do abafado limite daquelas salas. A humidade enlameia os contornos dos tectos. O bronze das paredes ilude a pseudo-brancura das roupas. As paredes sorriem cinismo: - Logo te sujas!
Mais pessoas nascem de cadeiras vazias. Mais suores alimentam as esperas eternas. Mais moedas desfloram ranhuras em orgias de apostas…
Trocam-se olhares. Os “boxers” quebram os coloridos caninos dos diminutos “fios-dentais” com socos-amor. As calças rebolam no mini-atrevimento das saias em milhentas rotações de desejo. Os cavalos molhados babam vapor de luxúria já perto do clímax. A meta.
A máquina 5 chega em último. As roupas encolhem em 90 graus de vergonha. As profanas peúgas tingem a pureza das sagradas camisas brancas. Os botões descosidos (en) cravam-se nos cascos dos desbotados cavalos de corrida. Perdem-se apostas!
As pessoas rezam prejuízos.
Lavado seja.
Ámão.

11 outubro 2007

Por vezes...



Por vezes dou por mim a sorrir...
Por vezes dou por mim a cantar...
Por vezes dou por mim a sorrir quando canto, distraído, a letra tremida daquela canção. Aquela canção da qual até nem gosto... mas que, por vezes, se entranha e encarna no meu conteúdo.
E, contudo, vou cantando! E vou sorrindo...
Por vezes dou por mim a correr...
Por vezes dou por mim a subir...
Por vezes dou por mim a correr quando subo, ofegante, contra a corrente daquela multidão. Aquela multidão que até teima em descer... mas que, por vezes, se abre em caminho para eu passar.
E, sorrindo ao passado, vou seguindo! E vou correndo! Por vezes cantando...
Por vezes dou por mim a sorrir, feliz, colhendo uma flor no canto daquele jardim. Aquele jardim no qual até passo todos os dias, correndo... mas que, por vezes, floresce no encanto de me sentir assim.
E assim vou vivendo...

04 outubro 2007

1 Minuto de Sol

Por entre a imensidão de momentos sombrios que passei nas trevas, o único que recordo é aquele minuto de Sol... :)

01 outubro 2007

O Pesadelo da Insónia



Estás cansado…
Fechas os olhos com um pequeno gesto pestanejante, enquanto perguntas a ti próprio: “Para quê?” – Sabes que não vais conseguir dormir!
Abres os olhos! Deixas o teu olhar sincopado contar os pontos negros do primeiro quadrante desse borbulhento tecto, numa tímida tentativa extravagante de quantificares o infinito acne que povoa todo o céu do teu quarto.
Estás inquieto…
Rebolas na cama, uma vez, duas vezes, três…
Quatro da manhã!
Procuras um tesouro debaixo da almofada, qual Pirata Imberbe Azul, ainda confuso com o fuso horário desfasado da viagem… Seis da tarde?
Cinco da manhã!
Estás perdido…
Sais da cama com um passo inconstante, sem farol, e embates noutro pouso, encostado a um canto. Depois do choque, o dedo grande do pé faz-te recapitular, mentalmente, todos os palavrões que conheces, em diversas línguas, até que esqueces a dor.
Sentas-te e ris… Naufragas na intermitência duma divertida flatulência desprovida de odor, qual Condenado à Vida na Cadeira Acústica.
Estás só…
Folheias o recheado catálogo consumista duma qualquer hiper superfície comercial. Indignas-te ao não encontrar comida de gato com sabor a rato e, nesse momento, reparas que a solidão se tem revelado bastante produtiva… Tens aprendido mais contigo próprio do que com os outros!
Estás louco…
Voltas para a cama e encontras, entre os lençóis da memória, a imagem daquele menino que foi a Boston buscar novos rins… Ficou famoso, mas morreu na mesma! Pensas na sorte que tens…
Estás vivo…
Ouves um tiro.
Sentes o projéctil rodopiar em torno dum corno de rinoceronte.
As rãs coaxam, como se nada fosse, e tu continuas ali, na subcave dum prédio de 57 andares, em plena selva Amazónica.
Ela aparece e abre-te a boca. Fica a contemplar, sorridente, os pedaços de tártaro que invadem o flanco esquerdo da tua mandíbula, confortavelmente instalados na parte posterior de dois incisivos.
O que ela realmente procura é a bala que o japonês disparou, e nada mais lógico, como chumbo que é, que tenha encontrado o local ideal para passar o resto dos seus dias refastelado num dente. O seu bem merecido paraíso…
Sim, vida de chumbo não é fácil. Então agora, que foi rejeitado pela gasolina!
Foi uma história de amor que acabou mal e que nos faz saltar para a primeira metade do século passado, em pleno Médio Oriente… – Despertas em sobressalto!
Estás baralhado…
Quando, finalmente, a tua alma rebelde consegue embarcar num flutuante sono reparador, é invadida por um dissonante pesadelo, tão ou mais trágico que a própria insónia!
Pegas numa caneta!
Pensas que enquanto tiveres tinta e papel,
Serás como abelha, produtora de mel.
Para nos adocicar a alma, suavizar os sentidos.
Fazer-nos apreciar todos os momentos vividos…
Estás confiante…
Não passas de um sonhador inato, um mero defensor de causas perdidas, com liberdade de escolha entre uma só opção. Pensas que vais conseguir?
ACORDAAA!
Pfff… Nem isso consegues…
Não estás a dormir!

20 setembro 2007

A Outra do Quarto ao Lado



E o acaso ergue uma ponte
Sobre a acidez daquele rio,
Que desagua e se esconde
Numa masmorra suada.

E o ocaso cobre aquele céu
Com um negro manto rasgado
Por mil estrelas decadentes
Cuspidas por um mosqueteiro alado.

E enquanto uma duvidosa raça
Uiva para a Lua dizendo que é sua,
Castanholas esquizofrénicas
Fazem outros cães ladrar na rua.

E quando a gordura da bifana
Lubrifica o desejo carnal,
Então, eu tenho a certeza,
E sei que NÃO ÉS IGUAL!

27 agosto 2007

Recaída



Hoje lembrei-me de ti...
Não é que não o faça noutros dias, noutros momentos,
E sei que agora vou dormir e lembrar-me-ei de ti amanhã, doutra forma que não a de hoje.
Talvez menos dolorosa...
Não é que seja mau para mim recordar-te,
E sei que o faço porque, no fundo, ainda sinto a tua presença.
Talvez menos concreta...
Mas hoje lembrei-me de ti
E senti a tua falta!

13 julho 2007

Todas as vezes…



Cada vez que, à beira do precipício,
Me encontrares dividido entre a cobardia e o salto,
Empurra-me do alto…
Pois a minha coragem é tão verticalmente inexistente
Que, na mais oblíqua das hipóteses,
Me obrigaria a dar um horizontal passo a trás!

Cada vez que, à beira do Tejo,
Me encontrares dividido entre o desalento e a embriaguês,
Enche-me o copo outra vez…
Pois a minha força de vontade é tão viciosamente fraca
Que rapidamente me afogaria numa congestão de sentimentos,
Só para não amplificar o sofrimento duma cirrótica morte lenta!

Cada vez que, à beira da loucura,
Me encontrares dividido entre a agonia e a morte,
Dá-me uma corda bem forte…
Pois, tal como tu me odeias, também eu me odeio.
E com esse sufocante laço, permaneceremos unidos para sempre!
Meu amor…

01 junho 2007

409


















Gosto do meu quarto…
Gosto de estar no meu quarto, sozinho, enquanto o lusco-fusco se aproxima, lentamente, deixando para trás um Sol frio, distante.
Gosto de andar pelo quarto, quarto andar de relaxante loucura, ali mesmo, entre a Polónia e o Japão, quatro paredes despidas, uma terra de ninguém…
Gosto do sorrateiro luar que se entranha na janela, mal fechada, decapitado pelas lâminas afiadas da persiana, sangrando sombras, irrequietas, que colidem e desvanecem no tecto deste meu quarto minguante.
Gosto de estar no meu quarto, sozinho, enquanto espero por ti… Enquanto a imaginação se liberta do quarto que tem em mim… e esvoaça, como sombra, pousando suavemente ao meu lado, em forma de saudade.
Gosto de cantar o teu nome no meu quarto, naquela canção… Aquela da qual nem um quarto da letra sei… Mas tem o teu nome, o teu corpo, e sabe tão bem…
Gosto de estar no meu quarto, sozinho, enquanto uma insistente tosse alérgica a mim próprio me abre a boca e faz bocejar, fechando os olhos à medida que invades os meus sonhos, com essa fragrância inodora que faz o meu chão ceder.
Gosto do meu quarto…
Gosto de ti…

18 maio 2007

Coragem



Infelizmente para mim, não mais nos voltaremos a ver!
Porque, embora não querendo, quero...
Porque a Vida é assim mesmo, feita de encontros e desencontros...
Sim, sou corajoso, vou desistir!

17 dezembro 2006

Março em Coimbra



Senti algo!
Sim, foi a primeira vez que tive uma sensação... Senti uma necessidade incontrolável de sair dali, de me arrastar pelas entranhas suadas daquele explendoroso SER que, num gesto de puro mas compreensivel masoquismo, sentia prazer e alegria pela dor física que eu lhe provocava.
Tentei dizer algo!
Sim, foi a primeira vez que abri a boca... Esbocei um agudo som monocórdico, uma tentativa frustrada de imitar o choro que esvoaçava da boca daquele maravilhoso SER, que eu ainda não vira, mas de quem me sentia incrivelmente perto.
E eu queria estar mais perto! Queria encarnar numa gota do seu encarnado sangue, que sinuosamente me escorria pela face, e percorrer a mais profunda das suas reconditas veias convergentes, voltar a entrar naquele coração forte que já fora meu, que já fora eu...
Desejei algo!
Sim, foi a primeira vez que AMEI... Ainda não a vira e estava já completamente apaixonado! E o meu desejo era tão forte que consegui ver através da transparência das minhas pálpebras mal formadas! Vi a minha MÃE...
Fui arrastado por algo!
Sim, foi a primeira vez que oscilei ao ritmo do pânico causado pelas plásticas garras tentaculares de alguém que me tentava libertar dela, de mim mesmo... E esbracejei, e gritei, e deslizei por entre aqueles lubrificados dedos empregnados de plasma. Fugi deles, escalei paredes, contornei os monstros que as arrepiantes sombras cuspiam dos altos tectos daquela sala.
Mas quanto mais longe DELA estava mais fraco me tornava. E rapidamente fui capturado e aprisionado no vácuo dumas metálicas masmorras gradeadas, frio, sozinho, amputado...
Ouvi algo!
Sim, foi a primeira vez que que a voz da minha MÃE me acariciou os tímpanos... E aquela melodia tão suavemente doce conseguiu quebrar o gelo que me acorrentava naquele berço, tal como uma tartaruga voltada sobre a sua própria carapaça. E o toque das suas mãos, ainda mais docemente suave que o calor da sua voz, devolveu-me a vida, completou-me! E eu dormi...
Sonhei com algo!
Sim, foi a primeira vez que senti a segurança necessária para desligar os meus sentidos e embarcar na alucinante viagem do subconsciente... Gemi ao som estaladiço do brotar das unhas e dentes, ouvi o cabelo crescer como se fosse o quase inaudivel ruido da palha dum cigarro em combustão, numa daquelas noites frias em que o sopro dum vento canceroso teima em fumar por nós.
Disse algo!
Sim, foi a primeira vez que uma palavra emergiu da minha boca, do meu coração... MÃE!!! E a sua expressão (ma)terna, mas ao mesmo tempo inabalável, imponente, firme, foi derretida pela ternura daquela sílaba tónica, esculpindo na sua face o mais deslumbrante dos sorrisos, o mais poderoso combustivel da minha VIDA!

Chupetas, brinquedos, desenhos animados, bolas... cadernos, escolas... amigos, amores... desamores... discotecas, cervejas, cigarros... motas e carros... músicas, poesias, loucuras... almas-gémeas, aventuras... Tudo muda, tudo passa... mesmo ELA!!!

Sentiu algo!
Sim, foi a primeira vez que teve aquela sensação... Sentiu uma medo incontrolável de não ficar mais aqui, comigo, do arrastar das suas entranhas suadas na correnteza daquele rio de sangue que lhe perfurava o ventre.
Tentou dizer algo!
Sim, foi a primeira vez que A vi chorar... Esboçou um som mudo, um silêncio atónito que me disse mais do que... sei lá! E sentia-a cada vez mais longe, sentia-me cada vez mais longe...
E eu queria estar mais perto! Queria encarnar numa gota do seu agora bacilento sangue, que sinuosamente lhe escorria pelas pernas, e oxigenar a mais profunda das suas reconditas artérias ramificadas, dar vida àquele coração fraco que já fora meu, que já fora eu...
Desejou algo!
Sim, foi a primeira vez que teve medo do FIM... Ainda não o vira e estava já completamente apavorada! E o meu desespero era tão forte que rezei em sentido inverso na tentativa inverter o impossivel!
Foi arrastada por algo!
Sim, foi a primeira vez que o pânico a sugou em direcção àquela luz incandescente, mesmo no fundo do túnel, tentando libertá-la da minha mão, que ELA tão fortemente apertava... E esbracejou, e gritou, e deslizou por entre aqueles ofuscantes raios empregnados de energia. Fugiu deles, escalou paredes, contornou os anjos-da-morte que cuspiam dilacerantes foices afiadas dos altos tectos daquela gruta.
Mas quanto mais longe de mim estava mais fraca se tornava. E rapidamente foi capturada e aprisionada num vazio inócuo, esperando o Juízo Final, fria, sozinha, amputada...
Ouviu algo!
Sim, foi a primeira vez que a mais dissonante de todas as vozes beijou delicadamente os 6 sentidos da minha MÃE... E aquela melodia tão suavemente doce conseguiu quebrar o gelo que a acorrentava na incerteza do purgatório. E o toque dumas mãos divinas, ainda mais docemente suave que o arrepio provocado pelo timbre da angelical Voz, retirou-lhe a vida! E ela dormiu...
Sonhou com algo!
Sim, foi a primeira vez que se sentiu delirar... E com a certeza de que tinha cumprido todas as suas obrigações de mulher, de MÃE, deixou-se embarcar na alucinante viagem do subconsciente... Esvoaçou ao som sincopado do bater das asas de pombas celestiais e bebeu todas as cores que camuflam a palidez das pétalas das divinas flores dos jardins do Éden.
Disse algo!
Sim, foi a ultima vez que ouvi a voz da minha MÃE... E a sua expressão, agora abalada com o desgate, mas sem nunca deixar de ser imponente, firme, derreteu-me pela doçura daquele simples e último desejo... Tangerinas! Nãooo, Clementinas. Queria sentir no paláto a terna e sucolenta frescura da polpa alaranjada das clementinas. E à medida que as lágrimas marcavam com sal a minha cara, ELA exibiu o derradeiro sorriso final... AAAAHHHHHHHHH!!!!!!!!!!
Deixei de sentir...

19 julho 2006

O Vendedor de Gelados



Pé ante pé, seguia as pegadas decalcadas na areia fina mas já pouco esbranquiçada, onde flutuavam os restos mortais de inúmeros polímeros plásticos, fruto da pouca ou inexistente consciência ecológica daqueles que, nessa época do ano, passam os dias na praia e as noites em bares, falando e culpabilizando os governos pela triste condição imunda que reina no país que eles próprios conspurcam.
Eram pegadas consistentes, revelando um passo firme, dedicado, conhecedor do terreno que pisava. Eram pegadas monótonas, tristes, denunciando um passo cansado, que não percorria aquele terreno em passeio. Eram as pegadas do Vendedor de Gelados!
Parei, estendi a toalha na areia, sentei-me nela e abracei a paisagem com um olhar profundo. Era deslumbrante…
A força do mar é surpreendente. Tem um poder tranquilizante, entoando suaves melodias em cada rebentar duma onda. E em todas essas pequenas explosões, eram projectados estilhaços de mar que me atingiam o corpo e temperavam a minha tristeza e agonia com o mais puro de todos os sais.
- Olhó gelado! Olha a água fresquinha e a bolacha americana! - ouvi eu gritar, não muito longe donde me encontrava.
Era ele! Era o responsável pelas pegadas que eu atentamente segui e me levaram até àquele lugar fantástico. Era o Vendedor de Gelados!
Tinha um porte considerável, do qual se destacava um portentoso abdómen com um tamanho tal, que suplantava o volume da arca que transportava às costas.
- Olhó gelado! – retorquia ele, de novo, já enjoado dos automatizados sabores exóticos que lhe esvoaçavam da boca e derretiam na tórrida atmosfera que circulava em torno da sua mala pouco térmica mal fechada.
E lá continuava, com o seu passo pendular, por vezes interrompido por assobios e acenos de pessoas, principalmente crianças, enfeitiçadas pela magia da arca que ele carregava, rendidas à tentação da pecaminosa e doce gula que delas se apoderava.
Sem pestanejar, o Vendedor de Gelados rapidamente alterava o seu percurso, assumindo um rumo perpendicular ao seu trajecto normal, tal como um caranguejo que, de repente, começou a andar para diante.
Pousava a mala na areia e, antes de pronunciar qualquer intenção em abri-la, suspirava profundamente como que agradecendo aquele período de diástole merecido. Então, satisfazia os gulosos desejos de quem o solicitava e voltava ao encontro da linha marcada pelas suas pegadas, como um comboio que se arrasta sobre os carris de ferro em brasa.
Coloquei os auscultadores dum leitor de CD’s portátil, que escondia na mochila, e continuei a apreciar a paisagem, ao som complexo e sincopado duma composição de jazz que, inexplicavelmente, acompanhava o ritmo das irrequietas ondas balançantes do oceano. Era como assistir a uma dança contemporânea, em que as bailarinas agitavam longos e transparentes véus de água, com movimentos irregulares que variavam entre instantes duma acalmia absoluta e acessos de raiva incontrolada.
Nesse momento, tudo me pareceu perfeito!
A vida podia, realmente, ser um conto de fadas. Tinha descoberto, naquele curto período de tempo, que, tal como no grande ecrã, o meu percurso terreno se tornava mais belo e sereno com música de fundo. E é essa, sem dúvida, a grande diferença entre a vida real e um filme.
Para qualquer direcção em que olhasse, tudo parecia ter mais cor, mais alegria, mais vida. Até o próprio Vendedor de Gelados aparentava uma leveza e motivação tal, que faziam dele uma criança de província delirante e maravilhada ao ver o mar pela primeira vez.
Mas como qualquer tipo e formato de arte, a música tem o poder de despertar em nós sentimentos diversos, por vezes contraditórios, dependendo do seu próprio ênfase e tonalidade, e das recordações que consegue reavivar-nos na memória.
Como tal, seguindo-se uma melodia triste e melancólica, o meu estado de espírito, assim como o magnífico dia luminoso que, até àquele preciso momento, se fazia sentir, tornou-se monótono e cinzento.
Retirei, de pronto, os auscultadores, e voltei à realidade, nem tão colorida como uma música animada, nem tão deprimente como uma melodia perturbadora.
- Olhó gelado! Olha a água fresquinha e a bolacha americana! – voltei a ouvir, juntamente com um já pouco estrondoso bater das ondas nas rochas, aquela voz agora rouca e cansada, assinalando, por certo, que a sua presença na praia estava a chegar ao fim.
A mala onde transportava aquelas calóricas e deliciosas guloseimas que, naquele quente e abrasivo instante, de gelado só já tinham o nome, estava, tal como o areal e ao contrário da maré, quase vazia.
Era o sinal que a sua jornada de labor estava praticamente concluída, que os seus secos e calejados pés iriam descansar, mesmo que só por umas horas, no seu pobre mas reconfortante lar.
E já sem ninguém na praia, num gesto mecanizado e inconsciente próprio dum operário numa linha de montagem em série, ouvi-o apregoar pela última vez:
- Olhó gelado!

17 julho 2006

O bar da D. Luz



Perco-me no tempo, mergulho na imensidão dum pequeno livro. Afogo-me no reflexo dourado dum copo alto, cada vez mais baixo, até que desaparece e é rendido por outro.
As pessoas arrastam-se, sozinhas, na multidão.
Minto aos outros e a mim mesmo, até que acredito que vivo nessa mentira.
- “Boa tarde D. Luz” – diz um velho e enegrecido homem, que apenas se mantém erecto devido à firmeza de duas canadianas.
- “Pensei que já estavas morto” – diz a Dona que absorve mais Luz do que irradia, talvez pelas manchas escuras e opacas que ostenta na arrepiante cabeleira desleixada que transporta.
Outra multidão que arrasta pessoas solitárias, de uma margem para a outra.
- “Esta semana já morri seis vezes” – diz o amadurecido canceroso portador das muletas. (Mas será que algum dia esteve vivo?)
E ela enche mais uma garrafa duma água fétida, para acompanhar a difícil digestão doutra água ainda mais turva, servida numa pequena chávena branca, suportada por um pires. Triste sina, a do pires…
Outro apito, outro mar de gente que começa e acaba de atravessar o rio.
E ela suja as mãos na conspurcada água que jorra da torneira. E depois vai deixando as pequenas partículas purulentas nos pratos, chávenas e copos, cada vez que lhes toca, até ter que molhar as mãos de novo.
A empregada, desnorteada, muito a sudoeste do seu país de origem, fragmenta em pedaços a vida de um copo, que provavelmente nasceu na Marinha Grande. Uma coisa é certa, morreu no Cais do Sodré, tal como o preto que, esta semana, já ressuscitou seis vezes.
Outro casal de turistas, ofuscados pela energia luminosa que a D. Luz absorve. – “Que bom seria viver aqui” – pensam eles com uma estúpida inocência.
E mais um viciado que troca pensos rápidos por chapas metálicas.
- “Aqui estão mais duas torres loiras dispostas a dispensar umas moedas que ajudam a imortalizar o vício” – é a informação que atravessa as poucas sinapses activas daquilo a que já se chamou um cérebro, na cabeça do drogado.
E a D. Luz canta: - “Eu vi um sapo, a encher o papo…”
Entra uma radiosa e alta mulher, ajudada pelos saltos dos seus bicudos sapatos, triunfante pela luz que irradia, e que a Dona absorve, daquelas que só mostra a secreta vagina a homens dourados pelo reflexo dos botões de punho dos fraques que usam.
E eu fecho o livro, e deixo-me arrastar pela multidão, antes que tenha a mesma sorte que o copo.

28 junho 2006

Elogio à Loucura



Repudio a lucidez,
Inimiga da verdade,
Da minha verdade,
Daquela em que eu acredito.

Desprezo a lucidez,
Aliada da tristeza,
Aquela que impede os sonhos
A que eu próprio me permito.

Abomino a lucidez,
Impávida destruidora
De deliciosos fetiches nocturnos.

Critico a lucidez,
Por nos deixar cegos, surdos e mudos.

Detesto a lucidez,
Pela lúcida vertente ditadora que ostenta.

Combato a lucidez,
Com copos dourados e fumos magenta.

Receio a lucidez,
Pela cruel monotonia que impõe na minha vida.

Comparo a lucidez
Ao agonizante e previsível trajecto
De um condenado infectado com sida.

Declaro que a lucidez
É o maior flagelo da humanidade!

Atribuo a lucidez ao diabo,
Como sendo a sua mais nefasta crueldade.

Feliz de quem abraça o impossível
Com um certo grau de ternura.

Loucos são aqueles
Que elegem a lucidez
Em detrimento da loucura!

Parasita



O medo teme que morras – cobarde – sem ti não existiria,
E no entanto é ele que te mata, todas as noites, dia após dia.

O medo penetra-te, o medo possui-te, suga-te com gosto,
E faz de ti prostituta, vendendo à insónia um lugar no teu leito.
Foge depois pelos olhos, deixando-te marcas salgadas no rosto,
Até que te mata, cravando bem fundo punhais no teu peito.

O medo degola-te, dilacera-te a alma, como um bisturi,
E no entanto – contrasenso – o que seria do medo sem ti?

A mais dramática das cartas de amor



Penso em ti, debaixo deste manto de lua e estrelas sem cor.
E quando o murmúrio dum frio alcoolizado as faz parecer infinitas,
Acredito fielmente que, tu e eu, somos a Geração do Amor...

E tu entras em mim, sob a forma ácida duma solução salina intravenosa,
Tal como o álcool se apodera dum fígado e o transforma em cancro,
Embriagando os meus sentidos com uma subtil calma nervosa.

E eu entro em ti, ao som ritmado das sete badaladas do sino da igreja,
Na assimetria típica duma desconfiada posição adolescente,
Enquanto transpiras pecado, rezando para que ninguém nos veja.

Penso em nós, debaixo dum manto incolor de lua e estrelas tecido.
E quando o calor das tuas mãos de parteira me ressuscita, sinto que te conheço,
Mesmo quando esse sentimento absurdo se torna desconhecido...

Perfil



Mais do que um simples bar, escondido entre os andaimes,
Trepadeiras oxidadas que ocultam a fachada,
O meu perfil segue os passos de um destino marcado,
Entre tragos de cerveja, numa noite alucinada,
Envolvendo com os olhos o teu seio perfilado.

Mais do que uma simples viagem, a uma província do sul,
Uma Jamaica perdida, numa zona marginal,
O teu perfil torna doce o gosto a vinagre azedo,
Temperando todo o teu rosto com um lacrimoso sal,
Numa tentativa incessante de disfarçar o teu medo.

Mais do que o uma simples loucura, numa rua sem emenda,
Rés-do-chão dum bairro alto, mais alto que os próprios tectos,
O nosso perfil deambula por caminhos deslumbrantes,
Entre o cheiro a carne viva, resultante dos afectos,
E o arrependido desespero do suor dos traficantes.

Mais do que uma simples paixão, contornada de incertezas,
Um caminho rumo ao Norte, traçado na palma da mão,
O perfil da amizade, aleatório, eterno e subtil,
É algo de muito vasto, um cocktail de emoção,
E impede que jamais me esqueça, de ti, desse teu perfil…

Mau Presságio



A cruel felicidade do amor é algo pequeno,
Que não compensa a tristeza inerente que se segue,
A infeliz realidade concebida a jusante,
O terrível desgosto de quem abre os olhos
E percebe que tudo não passou de farsa e mentira.

A pseudo-felicidade do amor é algo minúsculo,
Quando comparada com a real dor,
Aquela que atravessa a espinal-medula e se instala no peito,
Como um condenado a prisão perpétua
Que faz do nosso tórax a sua cela.

A triste felicidade do amor
É o uivar dos cães antes do terramoto,
A chegada dos Cavaleiros do Apocalipse,
O ultimatum do nosso inimigo antes de nos atacar,
Antes de nos destruir com todas as suas armas e forças.

A única felicidade do amor
É encontrada já muito depois de termos amado,
Muito depois de termos sofrido.
É quando, enfim, percebemos que o amor não mata,
É quando, por fim, tiramos proveito de o ter vivido…

Desilusão



Amor e ódio, desejo e repúdio, contradição,
Calma intranquila, lenta taquicardia, ordenada confusão,
Dor saborosa, magro inchaço no peito, cordilheira de depressões,
O que me fizeste? No que te tornaste? Restam-me recordações…

Antes de te conhecer, nada recordo,
Uma vida cheia de um vazio imenso.
Depois de te encontrar, delirei embriagado,
Levitei ao som da combustão dum pau de incenso,
Aprendi que as lágrimas são versos dum fado.

Perdi-me na tua sabedoria, enganei-me com as minhas certezas!
E só Deus sabe quantas eu tinha! Eram tantas…
Mostraste-me o que eras, mostraste-me o que querias ser.
Eu queria o que tu eras e gostava daquilo que querias,
E só agora que partiste reparo que, afinal, nunca te cheguei a conhecer!

Ainda bem que o amor é cego,
Para que nos possamos amparar na sua bengala,
Quando decide partir.
Ainda bem que o tempo tudo cura,
Para que possamos olhar em frente
E continuar a sorrir…

Rasto da Imaginação



Resolvi abrir o espírito
E seguir os passos da Imaginação.
Auscultei cuidadosamente o seu rasto,
Desliguei-me da voz da razão.
E nesse rasto quente e sinuoso
Que o suor dos pés humedeceu,
Encontrei um poema maravilhoso
Que transcrevi e ficou só meu…

Dependendo da intempérie,
Que alterava a firmeza do solo,
Os passos organizavam receitas
Esculpidas com ingredientes dum bolo.
E nesse bolo morno e salgado
Que o engenho das mãos teceu,
Encontrei um poema inspirado
Que transcrevi e ficou só meu…

Descobri bons e diversos sabores
Em cada fatia que saboreava,
Gosto a chuva e neve agridoce,
Fruto do solo por onde o rasto andava.
E nesse rasto frio e cansado
Que a inquietude e força dos pés fez,
Encontrei um poema abandonado
Que transcrevi e deixei para vocês…

Distorção



“- Come e trabalha,
Cala e consente.”
Agonia-me este mundo,
Vejo um universo diferente.

Olho para a lua e parece-me um cubo,
Por vezes uma pirâmide quadrangular.
Apenas depende da nossa relação com um vértice.
É como um dado visto de cima a girar.

Olho para o céu e vejo água.
(Não pensem que está a chover,
Não é essa a estação do ano)
Para mim o céu é um espelho quebrado
Por alguém que tentou nadar
No reflexo do oceano.

Olho para o mar e vejo um jardim,
Impregnado com flores e cheiro a jasmim.
E eu entro nele com o meu olhar,
Deixando a brisa agitar as pétalas
Até que aquele movimento
Me consiga hipnotizar.

Dependendo das horas, vejo quadros diferentes,
Uma pirâmide num deserto de água
Ou um jardim alagado pelas lágrimas da nossa mágoa.

E nesses momentos tenho a certeza
Que os jardins não estão na terra
E os desertos não são de areia.
Ah, se soubessem o que eu vejo!
Vocês não fazem ideia…

Lágrimas



Fascinantes, essas pequenas gotículas que emergem do globo ocular.
Têm vontade própria, não as podemos controlar.
E o seu percurso sinuoso, que deixa uma suave marca no rosto, acaba sempre por cruzar os lábios, deixando aquele gosto salgado, límpido, produto da nossa dor mais profunda.
Alguém sabe onde acaba uma lágrima?
De onde vem, todos sabemos. Vem de dentro, é o sangue da alma.
Mas quem chora não repara que as lágrimas são suas aliadas, escorrendo e levando para longe as mágoas, para que se volte a acreditar que a vida é, sem dúvida, um conto de fadas…

27 junho 2006

Sentidos Cruzados



Consigo ver os sons,
Arrancados da viola,
Flutuando sem destino,
Preenchendo o volume da sala,
Gritando versos dum hino,
Que me tranquiliza e embala.

Consigo cheirar a água,
Que escorre pela parede,
E o odor das suas gotas,
Faz-me desejar ter sede,
Sede de amar e viver,
Sede de nunca ceder.

Consigo ouvir o aroma,
Que envolve este cinzeiro,
Tem uma tonalidade tão forte, tão alta,
Mais aguda que o próprio cheiro.
E o fumo declama poemas de paixão e dor,
Letras melancólicas
Escritas pelo sopro dum fumador.

Consigo saborear o cartaz,
Colocado na vitrine,
Tem vários ingredientes,
Mas só um sabor o define.
Um sabor a ferida aberta,
Envolta numa tira de gaze.
Um sabor melancólico e triste,
Fruto dum improviso de jazz.

Consigo sentir as cores,
Que me beliscam os dedos,
Teclas brancas e pretas,
Pressionadas com desejo e sem medos.
Pianos arrebatadores,
Delicados e transparentes.
No fundo são de todas as cores,
Que me tocam e deliciam,
Tal como tu, meu amor,
Me surpreendes…