17 dezembro 2006

Março em Coimbra



Senti algo!
Sim, foi a primeira vez que tive uma sensação... Senti uma necessidade incontrolável de sair dali, de me arrastar pelas entranhas suadas daquele explendoroso SER que, num gesto de puro mas compreensivel masoquismo, sentia prazer e alegria pela dor física que eu lhe provocava.
Tentei dizer algo!
Sim, foi a primeira vez que abri a boca... Esbocei um agudo som monocórdico, uma tentativa frustrada de imitar o choro que esvoaçava da boca daquele maravilhoso SER, que eu ainda não vira, mas de quem me sentia incrivelmente perto.
E eu queria estar mais perto! Queria encarnar numa gota do seu encarnado sangue, que sinuosamente me escorria pela face, e percorrer a mais profunda das suas reconditas veias convergentes, voltar a entrar naquele coração forte que já fora meu, que já fora eu...
Desejei algo!
Sim, foi a primeira vez que AMEI... Ainda não a vira e estava já completamente apaixonado! E o meu desejo era tão forte que consegui ver através da transparência das minhas pálpebras mal formadas! Vi a minha MÃE...
Fui arrastado por algo!
Sim, foi a primeira vez que oscilei ao ritmo do pânico causado pelas plásticas garras tentaculares de alguém que me tentava libertar dela, de mim mesmo... E esbracejei, e gritei, e deslizei por entre aqueles lubrificados dedos empregnados de plasma. Fugi deles, escalei paredes, contornei os monstros que as arrepiantes sombras cuspiam dos altos tectos daquela sala.
Mas quanto mais longe DELA estava mais fraco me tornava. E rapidamente fui capturado e aprisionado no vácuo dumas metálicas masmorras gradeadas, frio, sozinho, amputado...
Ouvi algo!
Sim, foi a primeira vez que que a voz da minha MÃE me acariciou os tímpanos... E aquela melodia tão suavemente doce conseguiu quebrar o gelo que me acorrentava naquele berço, tal como uma tartaruga voltada sobre a sua própria carapaça. E o toque das suas mãos, ainda mais docemente suave que o calor da sua voz, devolveu-me a vida, completou-me! E eu dormi...
Sonhei com algo!
Sim, foi a primeira vez que senti a segurança necessária para desligar os meus sentidos e embarcar na alucinante viagem do subconsciente... Gemi ao som estaladiço do brotar das unhas e dentes, ouvi o cabelo crescer como se fosse o quase inaudivel ruido da palha dum cigarro em combustão, numa daquelas noites frias em que o sopro dum vento canceroso teima em fumar por nós.
Disse algo!
Sim, foi a primeira vez que uma palavra emergiu da minha boca, do meu coração... MÃE!!! E a sua expressão (ma)terna, mas ao mesmo tempo inabalável, imponente, firme, foi derretida pela ternura daquela sílaba tónica, esculpindo na sua face o mais deslumbrante dos sorrisos, o mais poderoso combustivel da minha VIDA!

Chupetas, brinquedos, desenhos animados, bolas... cadernos, escolas... amigos, amores... desamores... discotecas, cervejas, cigarros... motas e carros... músicas, poesias, loucuras... almas-gémeas, aventuras... Tudo muda, tudo passa... mesmo ELA!!!

Sentiu algo!
Sim, foi a primeira vez que teve aquela sensação... Sentiu uma medo incontrolável de não ficar mais aqui, comigo, do arrastar das suas entranhas suadas na correnteza daquele rio de sangue que lhe perfurava o ventre.
Tentou dizer algo!
Sim, foi a primeira vez que A vi chorar... Esboçou um som mudo, um silêncio atónito que me disse mais do que... sei lá! E sentia-a cada vez mais longe, sentia-me cada vez mais longe...
E eu queria estar mais perto! Queria encarnar numa gota do seu agora bacilento sangue, que sinuosamente lhe escorria pelas pernas, e oxigenar a mais profunda das suas reconditas artérias ramificadas, dar vida àquele coração fraco que já fora meu, que já fora eu...
Desejou algo!
Sim, foi a primeira vez que teve medo do FIM... Ainda não o vira e estava já completamente apavorada! E o meu desespero era tão forte que rezei em sentido inverso na tentativa inverter o impossivel!
Foi arrastada por algo!
Sim, foi a primeira vez que o pânico a sugou em direcção àquela luz incandescente, mesmo no fundo do túnel, tentando libertá-la da minha mão, que ELA tão fortemente apertava... E esbracejou, e gritou, e deslizou por entre aqueles ofuscantes raios empregnados de energia. Fugiu deles, escalou paredes, contornou os anjos-da-morte que cuspiam dilacerantes foices afiadas dos altos tectos daquela gruta.
Mas quanto mais longe de mim estava mais fraca se tornava. E rapidamente foi capturada e aprisionada num vazio inócuo, esperando o Juízo Final, fria, sozinha, amputada...
Ouviu algo!
Sim, foi a primeira vez que a mais dissonante de todas as vozes beijou delicadamente os 6 sentidos da minha MÃE... E aquela melodia tão suavemente doce conseguiu quebrar o gelo que a acorrentava na incerteza do purgatório. E o toque dumas mãos divinas, ainda mais docemente suave que o arrepio provocado pelo timbre da angelical Voz, retirou-lhe a vida! E ela dormiu...
Sonhou com algo!
Sim, foi a primeira vez que se sentiu delirar... E com a certeza de que tinha cumprido todas as suas obrigações de mulher, de MÃE, deixou-se embarcar na alucinante viagem do subconsciente... Esvoaçou ao som sincopado do bater das asas de pombas celestiais e bebeu todas as cores que camuflam a palidez das pétalas das divinas flores dos jardins do Éden.
Disse algo!
Sim, foi a ultima vez que ouvi a voz da minha MÃE... E a sua expressão, agora abalada com o desgate, mas sem nunca deixar de ser imponente, firme, derreteu-me pela doçura daquele simples e último desejo... Tangerinas! Nãooo, Clementinas. Queria sentir no paláto a terna e sucolenta frescura da polpa alaranjada das clementinas. E à medida que as lágrimas marcavam com sal a minha cara, ELA exibiu o derradeiro sorriso final... AAAAHHHHHHHHH!!!!!!!!!!
Deixei de sentir...

4 Comments:

Blogger somoralebonscostumes said...

Profundo, simples, lindo e enternecedor... mas ainda muito presente para deixar de comover...

23:39  
Blogger eudesaltosaltos said...

Nao sei q comentar... é tao intensa q qq coisa q eu diga parece ficar aquém daquilo q foi escrito... bj

22:31  
Anonymous Anónimo said...

obrigada por partilhares comigo algo tao intenso.

sabes kem sou nao sabes?

21:30  
Anonymous Joao Neves said...

...abraço muito forte, Zé...

João Neves

10:06  

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